Os leitores de quadrinhos sabem que em meados da década de 80 a DC Comics lançou uma saga intitulada Crise nas Infinitas Terras. O objetivo dessa mini-série era dar um reset em todo o universo DC para recomeçar tudo do zero. Batman (com Frank Miller); Super-Homem (com John Byrne); Mulher-Maravilha (George Pérez) e outros tiveram suas origens recriadas e melhor contadas.
Podemos dizer que Cassino Royale, a primeira aventura de James Bond com Daniel Craig, teve o mesmo objetivo em relação à franquia do agente secreto britânico do M-16. A história recomeçou do zero (inclusive utilizando a história do primeiro livro de Ian Fleming a apresentar o personagem) mostrando já de início como o agente conseguiu sua licença para matar.
A abertura já foi diferente, sem a famosa vinheta do espião andando e atirando para a tela logo após a vinheta da MGM. Em Cassino Royale ela veio posteriormente. 007 passou a ser mais sério e violento embora mais humano. Como era o início o filme mostrava um agente ainda inexperiente em algumas situações e, digamos, ainda com muito sangue quente no corpo. É um Bond nada metódico e dono da situação como seus antecessores, mas um 007 precipitado e sem muito controle ainda. No decorrer do filme, porém, se observarmos bem, veremos que alguns aspectos da identidade do Bond que conhecemos vai sendo forjada aos poucos até o final do filme. Nele também é apresentado o grande parceiro norte-americano de Bond: Félix Leiter da CIA (que já havia aparecido em Cassino Royale). Personagem que acompanha Bond desde o Satânico Dr. No, primeiro filme de 1962.
Quantum of Solace retoma o filme anterior do momento onde o primeiro termina, sendo o primeiro filme da série que segue cronologicamente o anterior. O filme começa direto sem a famosa vinheta de Bond atirando (que pensei que viria antes da abertura “principal” mas o que não ocorre, tendo me deixado chateado por tirar essa marca da série) indo diretamente para uma ótima perseguição de carros.
Inicialmente o filme é meio confuso (até pra quem viu o anterior). Porém, o seu maior defeito foi imitar descaradamente a cena de perseguição sobre casas do Ultimato Bourne, inclusive a luta apenas com som ambiente e a câmera tremida entre Bond e seu inimigo. Não que a cena seja ruim, pelo contrário, é muito boa, mas Marc Forster deveria ter vergonha de copiar um filme tão descaradamente. Bond influenciou Bourne e agora Borune influência Bond, algo extremamente normal em qualquer linguagem, mas, repito, essa cena não foi influência, foi quase uma cópia mesmo.
Entretanto, o filme que começou um pouco fraco e sem sentido vai melhorando bastante aos poucos e dando sentido a toda a história. Embora o filme realmente tenha alguma influência da trilogia Bourne (tirando a cena de perseguição que é cópia mesmo) como fã da série de Bond afirmo que a identidade e o espírito original da série são mantidos durante todo o filme, principalmente em relação aos filmes com Sean Connery e Timoth Dalton. Há até uma referência ao 007 Contra Goldfinger onde em vez de ouro a morte é ocasionada por petróleo que poderia ser considerado o ouro atual – que será futuramente substituído pela água???????
Embora o filme não tenha tantos diálogos quanto Cassino Royale alguns deles são extremamente irônicos e inteligentes remetendo inclusive à Guerra-Fria que servia como pano de fundo original da série. É o caso de quando um Félix Leiter de cara nada amigável diz a Bond se ele acha realmente que o que “eles” (os EUA) queriam com América Latina era por causa dos comunistas e da cocaína? Ótima frase irônica que resume um pouco da Guerra-Fria e a política externa dos Estados Unidos no período que era supostamente pra “proteger” os países sul-americanos do “malvado comunismo” ou a atual política de combate ao narcotráfico na América Latina. O comentário de Leiter mostra bem que as coisas não são (nem nunca foram) o que parecem.
Como eu disse o espírito é mantido. Há referência a outros filmes da série; Félix Leiter e a parceria M-16 e CIA, espionagem, ação, belas mulheres(embora poucas) e um Bond que pode parecer que está contra sua agência mas que ao contrário do Bourne (personagem que considero beeeeem diferente de Bond embora as comparações persistam e o atual diretor faça com que isso ocorra – futuramente escreverei algo somente sobre Bond X Bourne) não é, nem jamais foi um renegado – como vê-mos ao final do filme. Ou seja, ele é um agente que trabalha para manter o Status Quo porém, agora, com mais reflexão sobre suas ações.
Porém o que me deixou mais feliz ao término do filme e me levou a escrever essa resenha foram alguns fatos que acredito que poucos notam. Como disse acima a narrativa de Bond recomeçou do zero. E, embora muitos achem esse Bond muito diferente dos anteriores acho que não é bem assim. È incrível como, de forma bastante sutil, Cassino Royale e esse Quantum of Solace estão construindo a identidade do velho Bond que conhecê-mos aos poucos, com pequenos detalhes. A cada filme àquele velho Bond vai se formando.
Se o Bond de Craig é mais violento e quase uma máquina de matar ao término desse Quantum of Solace podemos observar por sua atitude na cena final (que seria de aprendizado) que no próximo filme talvez ele já seja mais metódico e, digamos, “limpo” e profissional.
O tema principal do filme é vingança. Tanto de Bond como de sua parceira russa (a atriz Olga Kurylenco). E (não vou aprofundar para não estragar o filme) a atitude da personagem de Olga ao cometer algo que queria e sua reação posterior com os diálogos que tem com Bond, possuem influência direta com a importante atitude que Bond toma ao final do filme (tendo seu quantum of solace do título) e que será essencial na formação de sua identidade.
No geral o filme tem seus defeitos (como a descarada cena copiar-colar do Ultimato Bourne) mas é um grande filme que só se torna realmente completo ao seu término quando tudo é costurado. É um filme que faz críticas a política externa de certos países e a problemas do mundo atual. No universo de Bond é um dos melhores da franquia (mas, no geral, Cassino Royale é melhor). Craig está construído de ótima forma a identidade de Bond aos poucos, sutilmente. Sendo o melhor Bond desde Sean Connery. Vale destacar também a ótima abertura inicial de animação na voz de Jack White e Alicia Keys.
Ah e só pra não esquecer mais duas coisas: 1-finalmente sabemos quem era a amada Vésper e se ela traiu ou não Bond; 2- lembram que reclamei no início da falta da vinheta clássica? Ela aparece em um momento bem oportuno que prova ainda mais que esses filmes da “nova franquia” estão mostrando a criação do antigo Bond aos poucos – embora mais conectado com o mundo atual.
Nota: 4.0 de 5.0